07/04/2024 às 19h42min - Atualizada em 07/04/2024 às 19h42min

NOTA DO POVO GUATÓ SOBRE A PROPOSTA DO ESTATUTO DO PANTANAL (PL 5.482/2020)

Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal Mato Grosso e Mato Grosso do Sul

Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal Mato Grosso e Mato Grosso do Sul
Nós, membros do Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal, instância que congrega caciques, vice-caciques e outras lideranças nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, vimos a público manifestar posicionamento a respeito da proposta do Estatuto do Pantanal, apresentada por meio do Projeto de Lei n. 5.482/2020, de autoria do Senador Wellington Fagundes (PL/MT).

Em primeiro lugar, fazemos questão de dizer que somos um povo originário antiguíssimo porque nossos antepassados já viviam no Guadakan há mais de 8.000 anos, bem antes dos primeiros invasores europeus navegarem pelos rios pantaneiros em busca de ouro e prata. Guadakan, aliás, é a palavra que adotamos na língua mãe para designar o Pantanal profundo e seus rios, onde vivemos desde os tempos primordiais. Há quase 500 anos, quando os invasores da Europa aqui chegaram, muitas famílias do povo Guató estavam estabelecidas ao longo dos rios Paraguai, Cuiabá, São Lourenço, ParaguaiMirim e outros tantos.

Também ocupavam as grandes lagoas ou baías e muitos canais ou corixos da região. Prova disso é que somos citados como indígenas canoeiros e pelo nome Guató em documentos antigos, escritos por espanhóis, portugueses, franceses, alemães, brasileiros e pessoas de outras nacionalidades. Somos conhecidos como especialistas na arte de construir e navegar em canoas de um pau só, mas também sabemos cultivar florestas e roças, construir solos férteis e promover outras mudanças positivas nas paisagens.

Exemplo disso são os acurizais que manejamos, os aterrados ou aterros que construímos para morar e plantar, e as baías, rios e corixos que mantemos limpos para navegar, pescar e outros usos. Em todos esses locais há grande diversidade de plantas e animais. Para nós, o Pantanal é uma região sagrada, o suporte físico para a nossa existência e o lugar onde somos o que somos, um povo originário cujo modo de viver está intimamente associado às terras e águas tradicionalmente ocupadas. Também somos um dos povos indígenas que lutaram contra as tropas paraguaias que invadiram a província de Mato Grosso em fins de 1864.

Naqueles tempos, estivemos ao lado do Exército Imperial Brasileiro na Retomada de Corumbá, em junho de 1867, quando os invasores foram ali derrotados. Pagamos muito caro por tudo isso, seja por conta dos parentes mortos durante a guerra, seja por conta dos familiares que perdemos para a epidemia de varíola e outras doenças que passaram a assolar a região. A última epidemia que enfrentamos foi a de Covid-19, em 2020 e 2021, ao mesmo tempo em que lutávamos contra os incêndios que destruíram parte de nossas matas e roças. Apesar de toda a nossa contribuição para o Brasil, atualmente temos apenas duas terras indígenas demarcadas: uma em Barão de Melgaço, Mato Grosso, chamada Terra Indígena Baía dos Guató, e outra em Corumbá, Mato Grosso do Sul, denominada Terra Indígena Guató. Outras áreas tradicionalmente ocupadas aguardam o processo de identificação, delimitação e demarcação por parte do governo federal, como é o caso da Barra do São Lourenço, localizada na divisa entre Corumbá e Poconé.

Além disso, há mais de 100 anos sofremos um doloso processo de invisibilidade étnica no Pantanal, onde muitas de nossas famílias e várias comunidades são rotuladas de “ribeirinhas” e “tradicionais”. Esses termos servem para esconder nossa verdadeira identidade étnica, e negar o direito originário que temos sobre as terras e águas ocupadas desde longuíssima data. Em segundo lugar, queremos dizer que a destruição do Pantanal não decorre de nossas ações, tampouco da ação de outros povos indígenas.

Não somos nós que derrubamos e queimamos milhões de hectares de matas. Não somos nós que exploramos ouro e despejamos mercúrio nos rios. Não somos nós que pescamos para além do que é preciso para saciar a fome e sustentar as famílias. Não somos nós que plantamos soja na bacia do Alto Paraguai.

Não somos nós que defendemos a preservação do Pantanal a partir da expulsão de famílias indígenas de onde sempre viveram, para, dessa forma, transformar territórios ancestrais em parques, estações ecológicas, reservas biológicas e outras unidades de conservação. Não somos nós que poluímos o mundo a ponto de levar a humanidade ao precipício do fim do mundo.

Em terceiro lugar, queremos registrar que frequentemente tomamos conhecimento da proposta de leis estaduais para preservar o Guadakan, como a Lei n. 12.197/2023, conhecida como “Transporte Zero”, válida para Mato Grosso, e o projeto da “Lei do Pantanal”, apresentado em Mato Grosso do Sul. Em todas essas iniciativas, a ideia central é a de preservar o Pantanal para que a região continue a ser explorada economicamente e, dessa maneira, possa dar lucros infinitos aos não indígenas: pecuária, turismo, pesca, mineração etc. Seria isso possível em face das mudanças climáticas verificadas em todo o mundo? Até pouco tempo, semeávamos a terra em agosto porque em setembro era certa a chegada das chuvas. Hoje em dia, temos que plantar na beira dos rios, corixos e baías, e torcer para que as chuvas cheguem em janeiro ou fevereiro. Como se isso não bastasse, as cheias têm sido menores e milhões de hectares de matas foram queimados em 2020 e 2021. Muitas de nossas casas quase foram destruídas durante os grandes incêndios.

Por isso, os mosquitos que antes apareciam na boca da noite, agora permanecem em nuvens até o nascer o sol. Até tempestade de fuligem, cinzas e areia tivemos que enfrentar nos últimos anos, algo que nunca havíamos visto. Mesmo assim, muitos culpabilizam a nós, indígenas, pelos incêndios que destroem o Pantanal, mas se esquecem de dizer que as grandes queimadas inexistiam antes dos não indígenas se instalarem na região e nela constituírem fazendas de agropecuária, unidades de conservação etc.

Dito isso, relativo ao Estatuto do Pantanal (Projeto de Lei n. 5.482/2020), apresentamos algumas contribuições para o aperfeiçoamento da proposta. Primeira, que a ideia de conservação, proteção, restauração e exploração sustentável do bioma Pantanal observe não apenas a legislação nacional, mas que igualmente considere o Guadakan como sujeito de direitos, como assim é percebida a natureza ou o meio ambiente em outros países, como é o caso da Bolívia e do Equador. Como para nós, povo Guató, o Pantanal é um ser vivo, o lugar sagrado onde somos o que somos, o bioma precisa ser tratado como sujeito de direitos.

Segunda, que seja assegurada a participação de representantes indígenas, indicados por suas comunidades, em todos os conselhos consultivos e deliberativos, e nas demais instâncias da tomada de decisões, que tratem de políticas a serem definidas e aplicadas para o Pantanal. Terceira, que sejam incluídos princípios da filosofia indígena do bem viver nos fundamentos das políticas públicas e da macroeconomia destinadas para o bioma Pantanal: solidariedade superlativa, equilíbrio nas relações com o meio ambiente, reconhecimento e respeito às diferenças étnicas e socioculturais, valorização dos saberes ancestrais, construção de consensos, viver com simplicidade na vida em sociedade etc.

Quarta, que as comunidades indígenas, estabelecidas ou não em terras totalmente regularizadas pelo Estado brasileiro, sejam remuneradas e incluídas no pagamento por serviços ambientais que fazem desde sempre, qual seja, o de produzir, recuperar e proteger as matas, morrarias, rios e baías, bem como a vida como um todo na planície pantaneira.

Dessa forma, os jovens de nossas comunidades terão uma perspectiva otimista no Guadakan, onde devem ter acesso à educação escolar, saúde e outros direitos que lhes asseguram a inclusão como cidadãos plenos à sociedade nacional. Quinta, que as comunidades indígenas, estabelecidas ou não em terras totalmente regularizadas pelo Estado brasileiro, sejam indenizadas por impactos socioambientais negativos que venham de fora e afetem seus territórios, os quais decorrem de incêndios florestais, mineração, agropecuária e outras atividades humanas degradantes ao meio ambiente.

Sexta, que a promoção da regularização fundiária de propriedades privadas da terra, assim como a criação e a manutenção de unidades de conservação, sejam precedidas de estudos antropológicos e históricos oficiais para se saber, previamente, se nessas áreas houve ou não a remoção forçada ou o esbulho de coletivos indígenas em temporalidades mais recentes, especialmente desde o século XX até os dias atuais. Sétima, assegurar, com base na Convenção n. 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, a imprescindível consulta prévia, livre e informada às comunidades indígenas, o que deve acontecer antes da tomada de quaisquer decisões, como a implantação de empreendimentos dos mais variados, que possam afetar os bens ou direitos dos povos originários. Oitava, valorização do patrimônio cultural material e imaterial e dos saberes ancestrais dos povos indígenas para a preservação do bioma Pantanal. Nona, certificação ambiental, com o selo “Pantanal Sustentável”, das atividades tradicionais desenvolvidas pelos povos originários e comunidades tradicionais: artesanato de todo tipo, produção de alimentos orgânicos e outras.

Décima, exigir a realização do prévio Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) a toda e qualquer atividade econômica que promova a supressão da vegetação nativa de áreas extensas, o uso do fogo para a promoção de queimadas e a modificação do uso do solo, como ocorre em grandes propriedades destinadas a atividades agropecuárias e afins. Décima primeira, promover o treinamento e a contratação preferencial de indígenas para atividades de brigadistas no combate a incêndios e outras atividades ligadas à preservação e recuperação de áreas na bacia do Alto Paraguai.

Décima segunda, incentivar a realização de atividades turísticas nas modalidades rural, ecológico, cultural e outras que causem menos impactos negativos ao meio ambiente e às populações originárias e tradicionais. Pantanal, 7 de abril de 2024. Cacique Osvaldo Correia da Costa (T.I. Guató) Cacique Carlos Henrique Alves de Arruda (T.I. Baía dos Guató) Liderança Denir Marques da Silva (Comunidade da Barra do São Lourenço)
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