04/03/2024 às 11h31min - Atualizada em 04/03/2024 às 11h31min

Família que vivia em fazenda invadida por indígenas há 1 ano passa por dificuldades

Dono teve dois AVCs e hoje vive com um salário mínimo; área ficou paralisada, e dos 80 invasores só restou uma família indígena

EDUARDO MIRANDA
Dono de fazenda alega improdutividade na terra de sua família - Arquivo

Ontem, o drama do engenheiro agrônomo José Raul das Neves Júnior completou um ano. A propriedade que seu avô Manoel das Neves comprou quando chegou ao Brasil, mais precisamente em Rio Brilhante, em 1967, que pertence a seu pai, José Raul das Neves, e que até então era administrada pelo integrante da terceira geração, foi invadida por aproximadamente 50 indígenas da etnia guarani-kaiowá.

Atualmente, nem sequer um quinto dos indígenas que ocuparam a propriedade estão lá. Mora no local apenas a família de um dos invasores, chamado de Adauto, que ocupa a sede construída pelo patriarca dos Neves, além de um pequeno grupo que se abriga em um barracão próximo.

Incluindo crianças, não passam de 10 pessoas os ocupantes da área. Mesmo assim, Neves Jr. não pode entrar nem mesmo plantar nos 250 hectares de terras agricultáveis, os quais não estão sendo aproveitados pelos indígenas. 

Em outubro do ano passado, o engenheiro agrônomo conseguiu uma autorização do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Porém, após recurso do Ministério Público Federal (MPF) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), os prazos processuais fizeram com que ele perdesse o prazo para plantar e para colher a soja na terra.

“Até hoje estão discutindo a possibilidade de se dar produtividade ou não para a terra, que está invadida por eles [os indígenas] há um ano”, afirma Neves Jr.

De lá para cá, seu drama só aumentou. O pai dele, de 87 anos, sofreu dois acidentes vasculares cerebrais (AVCs) nesse período.

Ainda, a aposentadoria de um salário mínimo que o patriarca recebe do Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) é insuficiente para bancar os medicamentos necessários.

Sem poder plantar na safra atual, deixando soja para trás na safra passada, uma vez que os dois dias de trégua para a colheita em abril de 2023 foram muito pouco para retirar a oleaginosa, o dinheiro auferido da colheita mal deu para pagar os empréstimos e as dívidas com os fornecedores.

“Não gosto de ficar devendo nada para ninguém, por isso, com o dinheiro da safra passada, pagamos algumas contas, mas ainda nos resta pagar a do custeio. Agora, passamos por dificuldade, e eu vivo fazendo bico. Às vezes, atuo informalmente como agrônomo para alguns colegas”, conta Neves Jr.

Nas margens do Rio Brilhante, lindeira com a movimentada BR-163, a Fazenda do Inho tem 392 hectares, 250 deles agricultáveis, mas Neves Jr. diz que o cenário no local é de abandono: “Não há nada plantado lá, não há cultivo nenhum”.

Para se ter uma ideia, um hectare de terra na região está avaliado em pelo menos R$ 50 mil.

Algumas testemunhas que foram recentemente à propriedade alegam que a família de Adauto e o outro grupo que moram na fazenda praticamente não usam a terra para a própria subsistência, pois dependem de cestas básicas e ajudas de programas sociais.

FALTA DE PROVAS

Neves Jr., que já foi presidente do Partido dos Trabalhadores (PT) de Rio Brilhante e que lamenta a falta de apoio de setores da legenda – os quais, segundo ele, “fecham os olhos” para a sua causa, sem nem sequer tentar mediá-la –, continua lutando contra a invasão que ele reputa injusta.

E o maior motivo da injustiça, segundo Neves Jr., é o fato de não haver estudo antropológico ou laudo nenhum, qualquer documento que ateste que a matrícula da propriedade de sua família é um local sagrado – isto é, um tekoha – para os guarani-kaiowá.

“Eu desafio a Funai a me mostrar qualquer documento que mostre que a minha fazenda é uma área indígena Quero que ela faça isso. Não existe documento nenhum. Não tem levantamento fundiário, não há publicação em Diário Oficial, não há nada. Apenas uma reivindicação informal”, desabafa, que complementa que “se esse documento existir, que alguém me mostre então”.

OUTRO LADO

O documento, de fato, não existe. No ano passado, uma carta assinada pela Aty Guassu, 
isto é, a assembleia geral do povo guarani-kaiowá, a qual foi publicada no site do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), grupo ligado à Igreja Católica, detalhou que o direito de se reivindicar para um lado ou de se invadir para o outro foi a única justificativa apresentada para a ocupação.

“Não há nada pior para nós do que menosprezarem nossas decisões e o direito de nossa luta por nossos tekoha”, afirmam os indígenas. Na ocasião, os membros da Aty Guassu, por sua vez, disseram que não é esse colegiado nem uma organização guarani-kaiowá que decide uma retomada.

“Isso vem de cada comunidade, que não aguenta mais viver massacrada enquanto espera a demarcação [de terra] e que sabe onde fica seu território [sagrado] que foi roubado”, complementaram.

Em meio as argumentações, o único documento existente que vincula a Fazenda do Inho à reivindicação guarani-kaiowá é a criação de um grupo de trabalho pela Funai para estudar o caso.

Na prática, a ocupação serve como uma forma de pressão para garantir a posse e, futuramente, uma desocupação.

O único território indígena em estudo pela Funai na região é a Terra Indígena (TI) Panambi – Lagoa Rica, tekoha que está na outra margem do Rio Brilhante, no município de mesmo nome.

Nessa área, porém, com acesso mais difícil – sem uma rodovia asfaltada nem com o porte da BR-163 – e com maior resistência dos proprietários, não há ocupações.

MARCO TEMPORAL

No ano passado, logo após a invasão, Neves Jr. ingressou com uma ação de reintegração de posse na Justiça Federal, mas não teve sucesso por causa de suas justificativas: a primeira delas de que seria necessário o Supremo Tribunal Federal (STF) votar o marco temporal – o que já ocorreu no segundo semestre de 2023.

Na ocasião, a tese que estabelece a Constituição de 1988 como o marco para a demarcação de novas terras indígenas foi derrotada na Corte. Contudo, a reviravolta foi parar no Congresso Nacional.

Puxado pela bancada ruralista, o projeto de lei que legaliza a tese do marco temporal se tornou lei, depois que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), promulgou a proposta, a qual até chegou a ser vetada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas que teve seu veto derrubado pelos congressistas.

O outro motivo que levou os magistrados da primeira e da segunda instância a desconsiderarem – ainda que temporariamente – os pedidos de reintegração de posse foi a pandemia de Covid-19, mesmo que a pior fase das contaminações pelo coronavírus ter ficado para trás, em 2021.

“Sinceramente, agora estou esperando o que eu possa fazer. Certamente entrarei com uma nova medida judicial, até porque o contexto mudou muito. 

A Confederação Nacional da Agricultura [e Pecuária do Brasil], felizmente, está nos apoiando”, complementou Neves Jr.

OCUPAÇÃO É INVESTIGADA

A Polícia Civil de Rio Brilhante chegou a conclusão de que o Cimi patrocinou a ocupação da fazenda, fretando dois ônibus para a operação de invasão, ocorrida em 3 de março do ano passado. Na ocasião, Neves Jr. e seus familiares foram surpreendidos pelos indígenas quando estavam dormindo, sendo agredidos e expulsos da área.

Na sequência, a Polícia Militar agiu e dispersou parte dos indígenas, com prisão de pelo menos cinco deles, por esbulho possessório. Uma reocupação, porém, foi feita. Desde então, Neves Jr. não conseguiu mais o domínio da fazenda que seu avô comprou em 1967.

“O paradoxo é que meu avô se refugiou de um regime fascista em Portugal e hoje, nós, que sempre agimos com boa-fé, também somos alvo de uma forma de fascismo, em que muitos desprezam a nossa versão e a nossa história”, concluiu o engenheiro agrônomo.

No ano passado, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara (Psol-SP), esteve no local. Na ocasião, Neves Jr., que é filiado ao PT, foi proibido de chegar perto da comitiva ministerial.


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